terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A PAZ




"Paz, em hebraico, é Shalom, e, literalmente,
Shalom quer dizer: 'estar inteiro', 'estar em repouso'...

É então conveniente que perguntemos: o que nos impede de estarmos inteiros?
O que nos impede de experimentarmos o repouso, isto é, de estarmos em paz?

As respostas são múltiplas; destaco apenas as que me parecem essenciais;

- O que nos impede de estarmos inteiros, de estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o medo.

- O que nos permite estarmos inteiros, estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o amor.O contrário do amor, e portanto da realização do que somos, não é fundamentalmente o ódio, e sim o medo.

Medo de quem? Medo de que?
Medo de amar, melhor dizendo, de se perder, pois amar antes de se encontrar é perder-se.Certamente, existe toda sorte de medo: do desconhecido, do sofrimento, do abandono, da morte...

Todos esses medos podem resumir-se num só: medo de ser 'nada'.
Este medo nos leva a esforços inimagináveis, para provarmos a nós mesmos e aos outros que somos alguma coisa e que 'vale a pena' sermos amados, que o merecemos...

Ser amado seria, portanto, um direito do homem?
Infelizmente, este é um segredo muito bem guardado: aquele que procura ou solicita o amor jamais o encontrará... Só o encontramos no momento em que o damos... Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz desse dom 'gracioso' recebe o amor gratuitamente.

O Amor jamais se manifesta àquele que o pede, mas se revela sem cessar a quem o doa. Aquele que compreendeu e viveu isto sente-se em paz. E também inteiro, porque só o amor nos realiza (e é o cumprimento da lei).

O medo nos “castra”, torna-nos enfermos e impede a livre circulação da vida em todos os nossos membros. E no Amor não há 'membros impuros': 'Tudo é puro para aquele que é puro'; é o Amor que purifica.

Amar com todo o seu ser, este é o mandamento (mitzvah), ou, mais exatamente, o 'exercício' que nos é proposto: 'Amarás com todo o teu coração, com todo o teu espírito, com todas as tuas forças'; isto traz também uma esperança.Um dia amarei inteiramente, não somente com o meu corpo, minha cabeça ou meu coração, mas 'inteiramente'; um dia, se almejo isto sem perder a esperança, estarei em paz. Pois é suficiente desejar amar, querer amar, mesmo que ainda não seja amar...

Bem sabemos que o inferno não está nos outros; o inferno é não amar, é não se amar inteiramente, até em nossa dificuldade e algumas vezes em nossa incapacidade de amar...Nesse caso, talvez seja bastante não mais querer, não mais ter medo deste medo sutil, menos grosseiro, que é o medo de não ser amado, o medo de não amar...

Aquele que perdeu o medo de ser 'nada' não tem mais medo de tudo; paradoxalmente, é o medo de ser nada que nos impede de ser tudo. Se aceitássemos, por um instante, este 'nada' que somos, este 'nada a mais e nada a menos' do que somos, então, nesse mesmo momento, não haveria mais obstáculos à revelação e ao desdobramento do Ser que ama,
em nós e através de nós.

Se, supostamente, ser amado é um direito do homem, ser capaz de doar é uma realização, uma graça divina concedida ao homem; a alegria de participar da Dádiva e da Vida do Ser que faz 'girar a Terra, o coração humano e as demais estrelas', generosamente...Porém, não fosse pelo fato de nos 'sentirmos mal', como seria possível aceitarmos 'ser nada' quando nos sentimos ser alguma coisa?

O termo 'nada' pode parecer negativo; talvez fosse preciso dizer simplesmente 'ser', sem acrescentar qualquer palavra, para podermos pressentir que o que se soma ao 'ser' é algo de 'mental' e compreendermos melhor a palavra do Cristo, precedida pela de Buda (seis séculos antes): 'O que é, é, o que não é, não é'. Tudo o que é dito a mais vem do mental ou do 'mau', ou ainda, em algumas traduções, do 'mentiroso'.

Sentir-se em paz é estar num corpo relaxado, com o coração livre e a mente serena. E conhecendo melhor, hoje, as funções coordenadoras do cérebro, é sem dúvida pelo mental que devemos começar.

Ser nada a mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz – pressupõe uma mente pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra shalom.Por que não estamos em repouso?Não somente há o medo de ser 'nada' (ser mais ou ser menos do que somos), mas existem as lembranças, com as quais nos identificamos e que tomamos por nosso verdadeiro ser.

O caminho para a paz é aquele que nos faz passar das nossas identidades provisórias, irrisórias, transitórias, para a nossa identidade essencial (eu sou o que eu sou).

(...)

Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos demônios é a nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se derrama sem parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos ego, ou eu. Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o que era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do “segredo”... “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que é presente. São palavras do Evangelho e também palavras de cura...A morte não existe ainda, ela não é. Só permanece este 'Eu Sou', que existe desde sempre e para sempre. Não podemos ir para outro lugar, senão onde estamos; e onde nos encontramos aqui já estamos.

Por que procurar, em outra parte, a vida e a paz que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por fazer? Trata-se, primeiramente, de conferir menos importância àquilo que nos “impede” de estar em paz; depois, não lhe dar importância alguma, se quisermos; e isto significa aderir, instante após instante, ao que é, com um espírito silencioso, uma mente serena, ou melhor, não identificados com as memórias e com as emoções que essas memórias provocam.

Lembrar-se de que nossa verdadeira natureza está em paz é uma forma universal de oração. Essa rememoração de nosso ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na base das práticas de meditação de várias culturas ou religiões (dhikr – prática islâmica; japa – modalidade de ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos cristãos orientais, etc.).

Temos medo de que? De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não sermos o que nossas memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos ser?

Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica somente o medo de morrer. Se eu paro de me identificar com o que deve morrer, permaneço já naquilo que sou desde sempre.

Não pode haver outro artesão da paz que não seja aquele cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente pacificada.

Mesmo o nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão, um nervosismo, um obstáculo à paz, uma obrigação, um dever que se somará à infelicidade e à inquietação do mundo.

Afirmar que estamos em paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos...
é colocá-los em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranqüila da verdadeira Vida...




Autoria: Jean-Yves Leloup

Imagem: Internet


6 comentários:

Denise disse...

Este texto me lembrou um amigo, que diz "preciso cuidar de meus demônios interiores, eles me assombram nas noites vazias, falam sem cessar"...ele se referia à sua mente inquieta, altamente questionadora, mas que, a partir de um certo ponto, era nociva ao seu dono, provocando a perturbação em seus devaneios.
A paz pode vir pelas cordas esticadas de um violino, e ainda assim, esta "tensão" produzir a libertação da mente.
Destaco o bonito conjunto aqui exposto - o coração livre e a mente pacificada...

Passar por aqui é caminhada obrigatória do dia. A gente se enche de sensações renovadoras!

Beijos carinhosos!

Kelly Kobor Dias disse...

Paz - sentiento que reúne todos os outros sentimentos bons!!! beijos

Norma Villares disse...

Adélia amiga da alma e do coração,
Este texto mostrar como obter a PAZ tão desejada e tão esquecida.

Individuo tem suas raíses etimológicas na palavra INDIVISO, aquele que não se dividiu, não se fragmentou.
A Paz ajudar a desenvolver habilidades em retornar ao caminho da inteireza.
Muito forte e lúcido este texto.
A divina luz envolva seus caminhos em PAZ.
Beijos de luzes e cores
Paz e Luz!
Beijinhos no coração

Jorge disse...

Lia, Anjo coração,
Muito bom este texto. Disse tudo e com muita clareza.
Como você!!!

Beijo, com amor,
Jorge

Maria José Rezende de Lacerda disse...

Adélia querida. Vir aqui é ter a certeza de encontrar algo que nos leva ao crescimento. Este texto, lido, relido, absorvido com maturidade, leva-nos a mudança de comportamento e pensamento. E à paz - este estado de alma almejado por todos. Que consigamos mudar, que consigamos alcançar a paz. Beijos amiga, que Deus te ilumine sempre.

Claudinha ੴ disse...

Querida, eu vivo lutando contra meus medos. Tenho duas armas maravilhosas, uma é meu sorriso (decorrente do meu extremo bom humor que nem sempre é suficiente), outra é o meu blog que me ajudou muito. Mas lendo aqui, vejo que não estou só, que ainda tenho alguns medos e preciso urgentemente vencê-los...
Ah, viver... É muito custoso...
Beijos!