sábado, 3 de outubro de 2009

CIÊNCIA, RELIGIÃO E DESENVOLVIMENTO



CIÊNCIA, RELIGIÃO E DESENVOLVIMENTO –PERSPECTIVAS PARA O BRASIL

Encontramo-nos além do auge da modernidade e de seu projeto iluminista. Vivemos hoje o declínio de um sonho de prosperidade. De um lado, pessoas com abundância de conhecimento, tecnologias e bens de consumo. Do outro lado, miséria, fome, condições desumanas de existência. Por todos os lados, pessoas com a alma fraquejada, exaustas de violência, solidão e medo. Um Brasil repleto de agressão – dos assaltos, seqüestros, empregos, capitalismos, competições predatórias. Temos um humano isolado do mundo, dos espaços e das outras pessoas – que não se olham nas ruas, não conversam nos elevadores e não existem uma para a outra. A humanidade está doente, repleta de incertezas e cobranças provenientes de um dever-ser impossível. Vivemos em uma sociedade que anseia por um humano-máquina, o super-humano. Será isso desenvolvimento?


Tanta racionalidade não foi capaz de enxergar que a espiritualidade acaricia a alma, dá sentido à vida e às relações. Tanta racionalidade não soube cuidar da humanidade, da nobreza de cada pulso de vida no universo. Surgem então as perguntas: o que é a verdadeira prosperidade? O que é o desenvolvimento? Como traçar um plano de desenvolvimento no século da globalização e pós-modernidade; século também do aumento da pobreza mundial, da África dizimada, do sectarismo e da contenda religiosa?



DESENVOLVIMENTO


“O ser humano já não agüenta mais tanto desenvolvimento.”1


O projeto desenvolvimentista construído após a Segunda Guerra Mundial e aplicado em diversos países por todo o mundo mostra suas falhas e pede uma reestruturação. O progresso científico e tecnológico tal qual estão colocados hoje no mundo não correspondem aos anseios de uma vida digna e ética para todos os seres humanos. É necessário perceber que o desenvolvimento individual e da humanidade andam juntos e complementam-se. O atual conceito de desenvolvimento, aplicado em diversos projetos ao longo da segunda metade do século XX, pressupõe que o valor das pessoas está relacionado à quantidade de bens que ela consegue acumular. Ao colocar o desenvolvimento sob o foco da apropriação de bens, além de trazer a idéia de inclusão e exclusão, construiu-se a idéia de que apenas se atinge a felicidade com a conquista de muitos bens materiais.


Mas ao seguir por esse caminho, a humanidade fragmentou-se, supervalorizou a razão e deixou de lado o sagrado, empobrecendo-se em sua realização no mundo. Desde o advento do paradigma Iluminista de racionalidade e materialismo, as sociedades esqueceram-se da complexa rede de relações do ser humano com o universo; esqueceram-se também de prover as pessoas de alguns de seus direitos essenciais. Isso porque o Iluminismo possui uma lógica excludente, que rejeita visões de mundo que apontem caminhos diferentes dos seus, construindo, como conseqüência, um mundo repleto de contradições profundas.


Essa forma de estar no mundo implica descaso preocupante com os outros humanos e com todos os outros seres – a lógica do “eu por mim mesmo”. E solidão. Desrespeito. Desigualdades. Sofrimentos dos mais variados tipos. Onde está a nobreza inerente a cada ser humano? Ofuscada pelo materialismo. Onde se encontra a humildade de sentir-se parte de um todo tão complexo quanto inexplicável? Esquecida por uma razão arrogante.
Acontece que a própria ciência tem percebido que não dá conta de tudo e começa a abrir espaço para outras vozes explicarem fenômenos que vão além dos cinco sentidos. E assim deveria caminhar o desenvolvimento: percebendo que não basta apropriação material para o bem-estar. É preciso expandir a consciência para a complexidade da vida, respeitando a sacralidade de cada ser e agindo como uma parte de um todo, ou seja, respeitando os espaços, vozes e vidas. É nesse sentido que é mister o exercício da espiritualidade para uma noção de desenvolvimento mais ampla.


Para isso, precisamos ir além da perspectiva histórica do desenvolvimento e da relação entre ciência e religião propostas pela hegemonia ocidental, etnocentrismo e positivismo. Não se trata de negar esses pontos de vista, mas os compor com outros, formando uma teia complexa, em que cada fio, representado por uma etnia, modo de vida ou filosofia, afete positivamente o bem-estar de toda a humanidade. Transformar o relacionar-se com as pessoas, espaços e seres uma arte: a do tear.


Tecer saberes como fios: transdisciplinaridade. No paradigma moderno, impera a visão mecanicista, que valoriza a especialidade e a divisão do conhecimento em disciplinas e relega ao ostracismo a experiência sublime, a interioridade, a subjetividade e a consciência. A modernidade esqueceu-se de que ciência e religião são dois caminhos clássicos de apreensão da realidade, cuja diferença é marcada pelo diferente funcionamento dos dois hemisférios do cérebro. O esquerdo é responsável pelo funcionamento da sensação e razão. O direito, da subjetividade e arte. Ao valorizar muito mais um hemisfério, nos fragmentamos, em um processo esquizofrênico, perdendo a noção de o que é inteireza. Um desenvolvimento preocupado com o todo do ser humano leva em conta a questão material, por meio da economia, a questão psíquica, através da política, e a questão noética(2) , a partir do exercício da espiritualidade.


Falar em desenvolvimento fugindo da lógica tradicional implica defender o envolvimento. O humano envolvendo-se mais entre si e com o mundo. Desenvolver a alma: atentar-se para a qualidade do sentimento, do pensamento, do relacionamento, do coração. Que tal ter como indicador de desenvolvimento a qualidade das relações humanas, como a verdade dos sentimentos, a força dos valores humanos, o grau de unidade dos membros de uma sociedade, a igualdade entre as etnias, a promoção da condição das mulheres? Um desenvolvimento que valorize a Sabedoria.



Diferenças


“(…) temos que considerar a história de toda a civilização independentemente de terem a sua história e suas culturas legitimadas socialmente por civilizações dominantes.”3


Quando falamos sobre desenvolvimento, pensamos no paradigma da sociedade européia ocidental e branca, marcado pela história e cultura desses povos. Entendemos como desenvolvido o que é branco, o que não é “subdesenvolvido” ou “em desenvolvimento”, o que consome toneladas de tudo que vê pela frente e que tem condições de desfrutar de valores da ciência. Desenvolvimento com o eterno estímulo: “vamos lá! Avancem!”.


Se por um lado analisar a questão do desenvolvimento passa por várias linhas dessas culturas, pois sua hegemonia política e econômica marca a vida de grande parte da humanidade, não podemos nos esquecer dos outros povos e suas dinâmicas, histórias e valores para melhor ampliar esse conceito.


Não nos esqueçamos das populações africanas, asiáticas, ameríndias e tantas outras. Como elas pensam o desenvolvimento? Como elas articulam saberes religiosos, técnicos e científicos? Como são suas relações sociais? A idéia de que o cientificismo rompeu com o dogmatismo religioso ocorreu apenas no âmbito europeu e branco. Nas comunidades negras, africanas, asiáticas, etc, isso não ocorreu. Nem todas as sociedades percebem religião e ciência com pólos opostos; pelo contrário, é possível entender a religião como prática estimulante da ciência. Essa contraposição dos dois fragmentos é muito mais nítida no Ocidente europeu medieval e moderno.


Ao colocar o ponto de vista europeu no centro da discussão reforçamos o risco de perder a dimensão sagrada de outras religiões. Devemos aprender com outros povos os valores que eles trazem como contribuição ao processo de desenvolvimento. No Brasil, a colonização, que perdurou por séculos, trouxe tanto a religião quanto a ciência como saberes impostos, inferiorizando e discriminando o conhecimento e cultura indígena e africana.


Por isso, para se pensar desenvolvimento, é fundamental considerar a população de origem africana, assim como outras igualmente não hegemônicas, pois elas possuem um legado civilizatório original, que se reflete em sua espiritualidade, visão de mundo e forma de expressão. Esse segmento da população tem grandes contribuições para a construção de um conhecimento que vise solucionar os problemas sociais brasileiros.


Devemos aprender com outras culturas suas idéias sobre desenvolvimento tanto para aprimorarmos esse conceito em nossas realidades, quanto para conseguirmos pensar em projetos de políticas públicas que realmente respeitem a comunidade beneficiada. Os atuais programas não levam em conta a definição de desenvolvimento da população atingida, reforçando os modelos eurocêntricos e dificultando a reafirmação de outros modos de vida. É preciso parar e olhar o outro, criando uma cultura política de solidariedade e de valorização de todos os seres humanos. No Brasil, onde a cor da pobreza é negra, é fundamental pensar em novos eixos de percepção que saiam da atual visão de desenvolvimento.


Temos muito – e sempre – o que aprender. Escutemos outras vozes e as reconheçamos como legítimas. Entender os próprios valores como os melhores e inquestionáveis é um exercício de fechamento para o mundo. Infelizmente, foi isso que boa parte dos programas desenvolvimentistas fizeram. Ao colocar valores de racionalidade e materialismo como superiores, eles ignoraram o anseio humano pela transcendência e pelo aprimoramento da qualidade de relação entre as pessoas, esquecendo-se de que para a maior parte da humanidade, a natureza tem uma dimensão espiritual. Por isso, é importante ampliarmos o conceito de desenvolvimento e lembrarmo-nos de que a atual significação tem negligenciado os principais interessados: as pessoas no processo de desenvolvimento.



CIÊNCIA


“O compromisso com o conhecimento precisa ser uma aventura radical, pois ele é um convite a uma contínua abertura e investigação, e ao desfrute saboroso das descobertas.”4


Apesar de não conseguirmos apreender a realidade de forma completa apenas com o uso da razão, ela é muito importante para o desenvolvimento. É com o uso da razão que o radicalismo religioso é questionado e outras vozes podem então se manifestar. Foi o racionalismo iluminista, por exemplo, que questionou o dogmatismo religioso medieval e possibilitou a emergência de outras relações sociais, econômicas e morais na modernidade.
Mas devemos separar as coisas: não se pode confundir ciência ou religião em seu estado conceitual com os usos ideológicos que se fazem delas. Tanto o amordaçamento da ciência pelas religiões como a negação das religiões pelas ciências refletem a luta pelo controle das idéias e comportamentos. O paradigma moderno reprimiu a experiência do sublime em nome de algo confusamente chamado de ciência. Vivemos hoje a ditadura da ciência: o que tem valor, o que não é subdesenvolvido, o que faz sentido é a verdade da ciência. A base da ciência moderna é o desejo pelo controle. Coordenar ações é uma qualidade inerente ao racionalismo. Controlar cegamente é sua doença.


O mau uso da ciência e da racionalidade pode ser tão perigoso quanto o extremismo religioso. Portanto, a ciência deve servir como uma ferramenta para maior conhecimento do mundo e não como arma para manter certo discurso no poder. Devemos usar a racionalidade para ressignificar o papel da religiosidade e conferir um sentido mais profundo aos ritos, e não usá-la como tem sido feito: para execrar as outras potencialidades humanas, como a espiritualidade e a sensibilidade.


O conhecimento é uma experiência instigante, que organiza de forma efetiva nossas experiências cotidianas. Todo conhecimento é autoconhecimento, pois, ao conhecer, estamos mergulhando no entendimento de nossas relações constituintes. Por isso, não basta ter ciência, mas viver com ciência, incorporando-a às nossas vidas, aprendendo a cada dia nossas relações com o mundo. O papel do conhecimento é, portanto, proporcionar o reconhecimento da nobreza de todos os seres humanos e não humanos. E essa nobreza deve ser reconhecida no cotidiano. O conhecimento não é algo que se possui como um bem material; ele é algo transformador. A pessoa deve ser conhecimento, tomá-lo como repertório da vida. Por isso é importante pensarmos sempre a serviço de que e de quem o conhecimento foi construído. A ciência institucionalizada não tem capacidade de transformação, pois ela está a serviço de poucas pessoas. Pensemos, pois, uma ciência com compromisso social. Hoje, a ciência nos parece estéril de humanidade. Falta espiritualidade para orientá-la…


Devemos estar sempre atentos para a institucionalização do conhecimento, pois ela enrijece a leveza do pensamento. Uma vez que o conhecimento se transforma em instituição, ele por vezes perde seu sentido original, pois busca então a reprodução infinita de seu discurso, cristalizando-se para manter-se no poder. Onde fica a curiosidade, o olhar sobre o mundo, o constante questionamento, a criatividade de produzir mais –e sempre –novas narrativas? Poderá o conhecimento científico ser institucional e ainda sim manter sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento humano?


Um apontamento: diálogo de saberes, uma mutação consensual: abertura da ciência tradicional e da religião tradicional. Humildade das ciências em perceber as limitações de suas contribuições. Quanto mais simples e mais consciente da particularidade de seu papel, mais a ciência tem a contribuir, pois responderá ao que lhe cabe, respeitando os outros saberes. Colocar, portanto, a razão a serviço de um entendimento maior da realidade, incorporando-a como parte do universo que a gerou.



RELIGIÃO


“A religião e a religiosidade podem ajudar a concretizar a expressão da vontade de mudança na sociedade.”5


A espiritualidade dá respostas em um outro nível de explicação, para a junção dos saberes e compreensão do mundo. A expressão espiritual abre espaço para a realização do indivíduo como bem mais precioso da humanidade. Ela também induz no ser humano profundo respeito por tudo, pois, ao ligar seres e coisas através do sagrado, ele entende sua posição no mundo como alguém que compartilha a vida, exercitando, assim, a humildade. O respeito à transcendência não é só uma questão de fé, mas de acolhimento, reconhecimento e cultivo do melhor de nós mesmos.


A quebra de paradigmas, por meio da globalização, tende a cindir as pessoas, deixá-las perdidas, sem rumo. A espiritualidade tem o papel de construir valores comuns para a sociedade, reconhecendo a nobreza e sacralidade de cada ser humano, e dando um sentido mais profundo à vida. Por isso a prática espiritual implica a aplicação cotidiana de seus valores; não pode cair só na repetição dos ritos.


Nesse sentido, é importante diferenciar religião de espiritualidade. É a espiritualidade que une, liga e re-liga e integra Enquanto a religião é um grupo ou instituição em que as pessoas exercitam juntas a espiritualidade através de valores, crenças e normas comuns, a espiritualidade é a manifestação individual dessa característica humana.


Temos, por um lado, pessoas que optam pelo exercício individual da espiritualidade, mostrando aos outros diferentes formas de lidar com a realidade; e por, outro lado, pessoas que optam pela inserção em um grupo ou instituição, dentro do qual compartilham valores e normas comuns. De um lado, a maleabilidade da não institucionalização; do outro, a força da união de um grupo. Tanto uma forma quanto outra auxilia, com suas peculiaridades, na construção de um novo paradigma civilizatório.


Dois problemas que encontramos hoje são o fanatismo e o dogmatismo religiosos, que impedem que outras vozes se pronunciem. Esse extremismo, ao invés de trazer a função original da religião ( a de religar), torna-se um espaço massacrante e despotencializante. Todas as religiões são derivadas do amor em movimento, da força e da chama do sagrado, mas elas podem se transformar em uma espécie de “latifúndio do sagrado”, movimentando-se em um “materialismo religioso”, dominando e alienando rebanhos.


Nos últimos anos, grande parte das guerras que ocorreram no mundo foi por motivos religiosos. A religião pode revitalizar a dimensão humana da espiritualidade, mas não necessariamente gera um modo de ser mais solidário e compassivo. Por isso devemos usar o espírito crítico, a racionalidade, para que a religião não se desvirtue para jogos de poder. Assim como a ciência, a religião deve estar aberta para ser contestada por outros grupos. Isso cria o diálogo e a possibilidade de caminharem juntos. Proponhamos, portanto, às religiões e tradições espirituais fechadas em si mesmas o teste da ética universal: estarão elas infringindo os impulsos da espiritualidade humana, relativos à solidariedade, cuidado e compreensão?


Ao mesmo tempo, a institucionalização da espiritualidade através da religião cria um espaço de convivência, aprendizado e construção de valores comuns. A religião pode proporcionar a auto-estima necessária para o aprendizado e atuação e para a construção de uma identidade coletiva positiva. Ela também proporciona a criação de uma rede de solidariedade em uma comunidade, incentivando, assim, uma atuação cidadã. O universo religioso facilita, nesse sentido, a expressão de valores culturais mais autênticos de certos grupos sociais. É o caso das Casas de Santo. Há situações em que a economia da cidade gira em torno do turismo gerado pelo candomblé. E as Casas de Santo, além de gerarem e dividirem a renda, funcionam como creche, abrigo para mulheres violentadas pelos maridos e possuem considerável representatividade política.



Religiões no plural


“A experiência de viver a fé em uma “aldeia global” exige que os diferentes ensinamentos religiosos saibam responder às situações que ameaçam a paz e a justiça. (…) É preciso que todas as religiões façam um exame de autocrítica com respeito a certas práticas de educação religiosa que têm favorecido as divisões e inclusive a repressão.”6


“Para se construir uma sociedade harmônica e vitalizada, devemos valorizar e não massacrar as diferenças (…)Se a religião for oprimida, no mesmo sentido, perde-se a contribuição que ela pode dar ao somatório social.”7


Religar, enxergar a nobreza de todos os seres humanos é compreender as diferenças. Não basta a condescendência do “eu respeito, mas bem longe de mim”. É necessário diálogo entre as diferenças e a eterna abertura para o aprendizado. Não se trata de homogeneizar as culturas e valores, tampouco seguir a lógica do “cada um na sua”. Trata-se de alegrar-se com a alteridade, pois ela é uma rica fonte de aprendizado, aprimoramento de si e autoconhecimento. Mas é igualmente importante questioná-la para permitir que os outros também se aprimorem. É apenas com o diálogo sincero que é possível relacionar-se com respeito e amor.


Ao falar em religião, logo lembramos das grandes tradições monoteístas, e então reduzimos nossa capacidade de compreensão e de criação sobre a questão religiosa. É necessário considerar outras experiências religiosas que não as hegemônicas, como a vivência espiritual dos negros e indígenas. É também preciso respeitar as contribuições que as religiões podem dar ao somatório social.


No Brasil, a experiência religiosa dos povos da floresta, por exemplo, pode nos ensinar uma forma diferente de entender nossa forma de estar e se relacionar com o mundo. Esses grupos indígenas pensam a natureza de forma criativa (no sentido de estar continuamente criando), usando-a para simbolizar sua realidade social. Diferentemente ocorre na modernidade ocidental, em que a chave das relações está na lógica da produção. Nessa lógica, enxergamos apenas um pólo – o nosso – e entendemos o outro pólo como objeto passivo, passível de exploração. Esses grupos, pelo contrário, unem espírito e matéria. Para eles, tudo o que existe é vivo, ativo, capaz de partilha, recíproco e, portanto, relacional. Aprendamos com os povos da floresta para pensarmos em um eco-desenvolvimento, abandonando o ponto de vista antropocêntrico e enxergando-nos como parte que interage e troca com o mundo.



VALORES UNIVERSAIS


“(…) somente mata o outro, somente viola, exclui o outro, aquele que não se conhece, porque se conhecer é se conhecer na relação, na vinculação com o outro.”8


“Ousaria afirmar que a sociedade padece de credibilidade em si mesma porque os seres humanos ficaram impróprios.” 9


Falamos em articular ciência e religião para uma nova concepção de desenvolvimento. Mas de que religiões e de que ciências falamos? Como não calar vozes minoritárias ou enfraquecidas, impondo a toda a humanidade os discursos das instituições mais fortes? É necessário, pois, estabelecer valores universais para que, apesar das diferenças, todos os humanos possam caminhar juntos em prol de um projeto maior: o desenvolvimento global. Nesse sentido, por exemplo, tanto os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda que sofram a crítica de terem marcante viés ocidental e liberal, quanto os valores contidos em diversas escrituras sagradas de todo o mundo defendem posturas semelhantes em relação à humanidade.


É preciso resgatar e exercitar uma potencialidade humana latente: o respeito às pessoas. É necessário desenvolver uma cultura solidária, que observe e cuide tanto de seus direitos como dos direitos dos outros. Para isso, devemos sempre estar atentos para a nobreza de cada ser humano e respeitosos com suas limitações. O desafio é o encontro com o âmago da verdade dos outros. Ciência e razão para conhecer e questionar. Religião e espiritualidade para sensibilizar-se além dos cinco sentidos, para desenvolver a humildade de reconhecer-se como parte de um todo incomensurável e assim perceber o propósito de nossa caminhada humana.


Criar uma nova ética, baseada no autoconhecimento e na consciência de si e dos outros. Criar uma nova lógica e não buscar um resgate romântico do passado. Não é o caso de reforçar a moral, pois uma nova ética exige uma nova ótica. Uma ética do pertencimento, em que as diferenças possam existir e interagir com respeito. É preciso investir em uma ótica de união, ligação e sinergia com a Terra e com os que nela habitam. Precisamos ver o homo ludens, homo demens não como um descanso nos intervalos do período de trabalho. A esfera do lúdico, mítico, mágico e poético é tão importante para o desenvolvimento humano quanto a técnica, o trabalho e a racionalidade. Lembrar-se do ser humano não só pela sua capacidade de produção, como ele tem sido visto hoje, mas também como ser de relações ilimitadas, criativo, terno, sensível e com espiritualidade.
Nesse sentido, a ética do futuro deve trabalhar a humanização da humanidade; a valorização das qualidades associadas ao feminino; a capacidade de obedecer e guiar a vida; a unidade através da diversidade; a solidariedade; e o exercício de reconhecer ao outro o direito de não ser. Aprender com a sustentabilidade da natureza, que nos ensina que para manter-se vivo é preciso do apoio de toda uma comunidade de seres diversos. Compreender o princípio da ecologia, que mostra que a vida não surgiu através da competição, mas sim da cooperação.



OS PASSOS PRÁTICOS


“A felicidade, então, é uma das maneiras como poderemos chamar aquele estágio em que uma pessoa realiza, de forma plena, seu potencial.” 10


“O grito dos excluídos, além do medo, angustia a todos.” 11


É necessário um novo paradigma de humanidade, em que se estabeleça o mínimo e também o máximo de bens que uma pessoa deve possuir, pensando, assim, na condição coletiva. Essa mudança pode ocorrer por medo de se perder o que tem ou por solidariedade, ao indignar-se com a injustiça social. Ou a sociedade assume a solidariedade, impulsionada pelo binômio espiritualidade/ religiosidade, ou será dominada pelo medo. No caso do Brasil, é preciso uma mudança do rumo do investimento social. Atualmente, o investimento público brasileiro está voltado para a classe média, com a criação de empregos e redução de custos de produção de capital, ao invés de investir na melhoria das condições dos mais pobres. Todo o investimento para a redução da pobreza está relacionado à minimização das mazelas, em uma lógica assistencialista, sem que de fato se empodere o pobre a promover a sua mobilidade social.


Uma nova noção de desenvolvimento implica um novo sentido ao trabalho. Fazer do serviço o viço do ser. Trabalho para dar aos outros o que se tem de melhor. Por isso, as pessoas têm de respeitar sua vocação, para que possam executar suas atividades com amor e felicidade. É preciso também mudar a valoração do trabalho: hoje, por exemplo, os serviços domésticos são inferiorizados; já os voltados para a guerra, são valorizados.



Justiça e Governança


“Ser solidário é lutar por um direito que não é seu.”12


Outro pilar a ser ressignificado é a justiça e a governança. Dar à justiça uma lógica coletiva, ao invés da lógica individualista que temos hoje, permitindo a todas as pessoas dignidade e liberdade para agir. Incorporar uma perspectiva espiritual à prática da cidadania e ampliar, então, o sentido de justiça.


Mudar a noção atual de governo: menos centralizado, que disponibilize recursos às comunidades locais e deixe-as agir com independência. Menos estados centralizados e mais unidades básicas de gestão pública. Ampliar os espaços comunitários e dar-lhes voz para as tomadas de decisão, formando conselhos e parlamentos mais orgânicos. As questões básicas de vida deveriam ser discutidas em todos os níveis de decisão e gestão. Devemos participar mais e deixarmos de ser tão representados. Para isso, é preciso a busca do empoderamento, e não a espera para que nos seja concedido o poder. Empoderamento não pelo confronto, mas pela conspiração: aceitar a realidade para, ao se alinhar a ela, ter plena energia e entendimento para transformá-la. As mulheres, por exemplo, ao lutarem para ter mais voz e poder e ao conquistarem esse direito modificaram toda a sociedade.


As religiões podem ter um papel importante nesse sentido, uma vez que proporcionam a seus participantes sentimento gregário e elevada auto-estima. Por outro lado, as religiões podem dificultar esse processo, se sinalizarem uma opção por uma cultura paternalista, em que os cidadãos buscam um salvador da pátria, um protetor a quem devem obediência. É importante que a população brasileira aprenda a cobrar dos governantes, pois não existe um líder perfeito. . Enquanto cidadãos, temos de ter consciência de que o desenvolvimento também depende de nós e não só dos nossos governos. Para toda essa mobilização, a população tem de ser bem informada e bem formada. Uma nova educação torna-se necessária para uma nova humanidade.



Educação


“As pessoas estão querendo novamente que lhes ensinemos valores mais simples (…) porque elas estão em um processo tão alucinante que não sabem mais como abordar e vivenciar o dia e dormir.”13


É necessária uma revolução cultural e não só educacional. Como romper uma cultura paternalista como a do Brasil, por exemplo, sem rechaçá-la? Precisamos compreender que todos os seres humanos têm um projeto de felicidade a realizar, para, então, compreendermos que devemos valorizar uns aos outros, compartilhando um destino comum e valores como solidariedade e compaixão.


Como utilizar a educação para essa revolução cultural? Uma possibilidade é incluir o ensino da espiritualidade nas escolas. Lembrando-se de que religião é diferente de espiritualidade: ensinar não os dogmas e especificidades de uma religião, mas sim desenvolver nos alunos a inteligência emocional e espiritual, colocando alma nas escolas. O racionalismo científico foi muito ingênuo achando que conseguiria entender o cérebro sendo uma parte dele – são necessárias outras inteligências para entendermos a psique. Incluir o desenvolvimento da inteligência onírica, emocional e espiritual no cotidiano escolar. Educar para conhecer, fazer, conviver e ser. Colocar em todas as nossas ações e pensamentos a transdisciplinaridade, unido o efetivo ao afetivo, a razão ao coração, a análise à síntese, o intelecto ao espírito, o masculino ao feminino.


Mas devemos ter cuidado ao usar a palavra “transdisciplinaridade”. Não se trata de misturar tudo, mas sim utilizar cada ferramenta que temos em mãos. A ciência tem seu caminho: o analítico; bem como a religião possui o seu: o sintético. Um complementa o outro, mas não precisam ser misturados; o ser humano precisa de ambos, como duas pernas necessárias para a locomoção.


Mesmo sem modificar tanto a estrutura das escolas, uma pequena transformação já surte efeitos: permitir que as diferenças sejam ouvidas e respeitadas no colégio, que colegas de turma possam ser diferentes sem serem excluídos ou ridicularizados, que as diferenças aprendam entre si com a convivência diária.



Integrando o saber popular ao conhecimento científico


Uma outra proposta, voltada para a relação entre governo, comunidade e universidade, é a criação de um Centro de Excelência, em que os programas sociais fossem integrados à realidade da comunidade, possibilitando o empoderamento da população daquele local e a construção de um conhecimento que reconheça a inter-relação entre as aspirações materiais e espirituais das pessoas envolvidas, valorizando o saber popular e integrando-o ao conhecimento científico. Esse centro teria uma estreita relação com as universidades da região, demandando do saber acadêmico a atenção às realidades locais e à prática cotidiana das comunidades.


As mudanças de paradigmas educacionais, independente de como foram definidas, devem transformar os alunos em exemplos vivos de modos de vida possíveis e transformadores. Começar, mesmo que com poucos (pois há uma grande dificuldade em se mudar paradigmas) que sirvam de exemplo e multipliquem os novos valores no cotidiano. Realizar uma pedagogia do fazer, do ‘ensina-me a viver’. Ao mesmo tempo, ter sempre consciência de que os novos valores também são passíveis de questionamento, aprimorando, assim, e sempre, o conhecimento, em um processo contínuo de ação e reflexão.



CONSIDERAÇÕES FINAIS


“O momento que vivemos pode ser visto nesta metáfora que aprecio muito: ‘a lagarta já morreu e a borboleta ainda não nasceu’.” 14


“A sustentabilidade individual depende da sustentabilidade das comunidades da qual a pessoa participa.” 15


A relação ciência, religião e desenvolvimento passa por novas propostas de pensar a realidade, e as políticas para o desenvolvimento. Neste particular, a educação ganha nova dimensão enquanto um processo gerador de ciência, de desenvolvimento e de abertura para compreensão das dimensões religiosas existentes sob diferentes formas no ser humano. A relação entre ciência, religião e desenvolvimento tramita sempre entre o real e o ideal, o material e o imaterial; ela também toca na auto-estima, autoconfiança, valorização pessoal e social, não discriminação, busca por igualdade e exercício da cidadania para a melhoria social.


Ao aprender a conectar-se com o mundo, com seus seres e espaços, o ser humano sente-se parte de um todo e, portanto, responsável por suas ações. Os valores deixam de ser moral enrijecida para se tornarem ética construída no cotidiano, consciência. O fazer político muda, a partir de então. As pessoas tornam-se ativas, porque responsáveis e participantes. Para isso, devemos construir uma civilização de base materna, que abriga, acolhe, cuida, respeita, ama. Interação ao invés de integração. Sair do modo de vida excessivamente masculinizado que o cientificismo propôs. Mais carinho, intuição, estética.
Mudar implica desapego de conceitos. Transformá-los ou criar outros. Assim como a si, pois o indivíduo é uma construção dinâmica, tanto de células e órgãos quanto de subjetividade. Por isso é preciso aprender sempre. Conhecer os grandes mestres e líderes religiosos – exemplos da aplicação viva de valores no cotidiano. Questionar, observar, sentir, construir, reformar. Religião na vida. Existência com-ciência. É preciso que a ciência desça do pedestal e que a religião promova a percepção da coletividade e a busca da humana-unidade.

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1 CORRÊA, Rosângela. In: EGHRARI, Iradj Roberto (org.). Ciência, Religião e Desenvolvimento –perspectivas para o Brasil. São Paulo, Ed. Planeta Paz, 2005, p. 322.


2 Termo ainda pouco conhecido, “noética” refere-se a uma forma de consciência intuitiva, capaz de acessar direta e imediatamente o conhecimento que vai além daquele acessível à nossa racionalidade.

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Fonte:
www.cienciaereligião.org.br/2007/7/

Imagem:
sinapseslinks.blogspot.com/2009/9/


Um comentário:

Haroldo Matias disse...

Muito bom este post,convido você a visitar o blog tamoporai.blogspot.com e assistir ao vídeo ciência e espiritualidade.Um abraço e muita paz.